quinta-feira, 2 de junho de 2016


Não aconteceu exatamente assim

Uma etiologia é uma história que explica a causa ou a origem de um determinado fenômeno, uma peça cultural ou costume social, uma circunstância biológica, até mesmo uma formação geológica – a palavra grega para causa é “aitia”, que também está na palavra etiologia. Ela não é histórica no sentido moderno de um evento que realmente aconteceu no passado. Ela é, preferencialmente, uma história que presta contas, oferecendo alguma explicação das condições e circunstâncias presentes, baseadas em causas passadas. A antiga Escrita da História, que tenta prestar contas do passado, era, na verdade, etiologia.

A história de Adão, de Eva e do Jardim do Éden é um dos melhores exemplos de etiologia na Bíblia. No primeiro capítulo do Gênesis, os seres humanos são os últimos a serem criados, após as plantas e os animais. Em contraste, na história de Adão e Eva, foi criado primeiro o homem, em seguida um jardim que ele poderia habitar depois os animais, para que pudessem lhe servir de companhia e finalmente a mulher, como vemos nesta lista comparativa:

Gn 1,1-2,3                                                        Gn 2,4b-3,24

Primeiro dia – Luz                                             o homem

Segundo dia – Firmamento (Céu)                     o jardim

Terceiro dia – Mares e terra seca                     os animais

Quarto dia – Sol, Lua e estrelas                        a mulher

Quinto dia – Aves e peixes

Sexto dia – animais terrestres e seres humanos

Sétimo dia – Shabbat

Portanto, foram colocadas juntas duas versões do mesmo evento – a criação. Esse tipo de justaposição é uma tradição comum, também encontrada em Herótodo (484 a.C a 425 a.C) e em outros historiadores gregos.

E a natureza simbólica da história deve ter ficado clara para o seu público original por causa do nome dos personagens. Adão e Eva não eram nomes próprios na antiga Israel. Esses nomes não ocorrem em nenhum outro lugar da Bíblia, em nenhum outro personagem. (‘ãdãm é uma palavra hebraica para homem ou humano; Eva do hebraico hawwãh está relacionada com a palavra que designa vida). Os nomes são um sinal para o leitor de que Adão é um símbolo para os seres humanos em geral e Eva representa o sexo feminino – a fonte da vida.

A história de Adão e Eva é uma história sobre origens. Ela menciona a criação do mundo, mas esse não é o seu foco real. Ela se refere a criação da terra e dos céus por Iahweh e a descreve em detalhes. A descrição posterior indica que, de alguma forma, a terra já existia. A história enfoca, ao invés disso, a criação dos seres humanos – primeiro o homem depois a mulher, como sua companheira, depois dos animais terem sido criados, mas terem falhado em satisfazer a necessidade de companhia do homem. A história oferece, portanto, explicações para a origem de gêneros e de seus respectivos papéis na sociedade. E também explica a atração entre homens e mulheres: eles são feitos da mesma substância, o mesmo “osso” e “carne”, diferente dos animais. Essa atração está implícito a origem do matrimônio: Por esta razão o homem deixou seu pai e sua mãe e permaneceu com sua esposa e eles tornaram-se uma só carne (Gn2,24). A história conta porque os dois gêneros ficaram envergonhados de estarem nus na presença um do outro e porque os seres humanos, únicos na criação, vestiram-se; Em um nível mais profundo, a história sugere uma conexão entre sexualidade e conhecimento, que relembra a puberdade. Na história bíblica, o homem e a mulher tornaram-se conscientes de sua nudez quando comem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, assim com o desenvolvimento da consciência e do senso de responsabilidade moral no adolescente coincide com a maturidade dos órgãos sexuais e da libido.

A maldição do final da história aponta e pressupõe diferentes funções sociais no contexto israelita antigo. A subordinação das mulheres nessa história parece ser disseminada, a despeito das tentativas “politicamente corretas” de minimizar o fato. A mulher foi criada em segundo lugar, foi feita a partir do homem, para servir-lhe de companhia. Ela foi enganada pela serpente e que levou o homem à perdição. A hierarquia social já existia antes do fruto proibido ter sido comido.

Se ela for lida como evento real, como ocorreu no passado e que continua como uma influência nos dia de hoje, então a subordinação da mulher torna-se uma norma – a ordem do universo sancionada por Deus. Se, por outro lado, a história é entendida como etiologia, então, o seu lugar no contexto cultural e social na antiga sociedade é óbvio. Ela é  simplesmente uma tradição emprestada da história israelita antiga, em um esforço para explicar o status quo doméstico daquela sociedade particular, Acima de tudo, essas etiologias da história são teológicas. Elas explicam a separação de Deus e a mortalidade humana como resultado do pecado. Em resumo, dentro do gênero da antiga Escrita da História, as funções da história dos capítulos 2 e 3 do Gênesis são o relato da criação do mundo, mas essa não é só a intenção fundamental. Também, ela serve para explicar o contexto da estrutura doméstica da antiga Israel. Está implícito neste relato o reconhecimento dos historiadores de que os personagens são símbolos e não pessoas reais e que os episódios não são eventos reais do passado.

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