Não aconteceu exatamente assim
Uma etiologia é uma história que explica a causa ou a
origem de um determinado fenômeno, uma peça cultural ou costume social, uma
circunstância biológica, até mesmo uma formação geológica – a palavra grega
para causa é “aitia”, que também está na palavra etiologia. Ela não é histórica
no sentido moderno de um evento que realmente aconteceu no passado. Ela é,
preferencialmente, uma história que presta contas, oferecendo alguma explicação
das condições e circunstâncias presentes, baseadas em causas passadas. A antiga
Escrita da História, que tenta prestar contas do passado, era, na verdade,
etiologia.
A história de Adão, de Eva e do Jardim do Éden é um dos
melhores exemplos de etiologia na Bíblia. No primeiro capítulo do Gênesis, os
seres humanos são os últimos a serem criados, após as plantas e os animais. Em
contraste, na história de Adão e Eva, foi criado primeiro o homem, em seguida
um jardim que ele poderia habitar depois os animais, para que pudessem lhe
servir de companhia e finalmente a mulher, como vemos nesta lista comparativa:
Gn 1,1-2,3
Gn 2,4b-3,24
Primeiro dia – Luz o
homem
Segundo dia – Firmamento (Céu) o jardim
Terceiro dia – Mares e terra seca os animais
Quarto dia – Sol, Lua e estrelas a mulher
Quinto dia – Aves e peixes
Sexto dia – animais terrestres e seres humanos
Sétimo dia – Shabbat
Portanto, foram colocadas juntas duas versões do mesmo
evento – a criação. Esse tipo de justaposição é uma tradição comum, também
encontrada em Herótodo (484 a.C a 425 a.C) e em outros historiadores gregos.
E a natureza simbólica da história deve ter ficado clara
para o seu público original por causa do nome dos personagens. Adão e Eva não
eram nomes próprios na antiga Israel. Esses nomes não ocorrem em nenhum outro
lugar da Bíblia, em nenhum outro personagem. (‘ãdãm é uma palavra hebraica para
homem ou humano; Eva do hebraico hawwãh está relacionada com a palavra que
designa vida). Os nomes são um sinal para o leitor de que Adão é um símbolo
para os seres humanos em geral e Eva representa o sexo feminino – a fonte da
vida.
A história de Adão e Eva é uma história sobre origens.
Ela menciona a criação do mundo, mas esse não é o seu foco real. Ela se refere
a criação da terra e dos céus por Iahweh e a descreve em detalhes. A descrição
posterior indica que, de alguma forma, a terra já existia. A história enfoca,
ao invés disso, a criação dos seres humanos – primeiro o homem depois a mulher,
como sua companheira, depois dos animais terem sido criados, mas terem falhado
em satisfazer a necessidade de companhia do homem. A história oferece,
portanto, explicações para a origem de gêneros e de seus respectivos papéis na
sociedade. E também explica a atração entre homens e mulheres: eles são feitos
da mesma substância, o mesmo “osso” e “carne”, diferente dos animais. Essa atração
está implícito a origem do matrimônio: Por esta razão o homem deixou seu pai e
sua mãe e permaneceu com sua esposa e eles tornaram-se uma só carne (Gn2,24). A
história conta porque os dois gêneros ficaram envergonhados de estarem nus na
presença um do outro e porque os seres humanos, únicos na criação, vestiram-se;
Em um nível mais profundo, a história sugere uma conexão entre sexualidade e
conhecimento, que relembra a puberdade. Na história bíblica, o homem e a mulher
tornaram-se conscientes de sua nudez quando comem o fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal, assim com o desenvolvimento da consciência e do
senso de responsabilidade moral no adolescente coincide com a maturidade dos
órgãos sexuais e da libido.
A maldição do final da história aponta e pressupõe
diferentes funções sociais no contexto israelita antigo. A subordinação das
mulheres nessa história parece ser disseminada, a despeito das tentativas
“politicamente corretas” de minimizar o fato. A mulher foi criada em segundo
lugar, foi feita a partir do homem, para servir-lhe de companhia. Ela foi enganada
pela serpente e que levou o homem à perdição. A hierarquia social já existia
antes do fruto proibido ter sido comido.
Se ela for lida como evento real, como ocorreu no passado
e que continua como uma influência nos dia de hoje, então a subordinação da
mulher torna-se uma norma – a ordem do universo sancionada por Deus. Se, por
outro lado, a história é entendida como etiologia, então, o seu lugar no
contexto cultural e social na antiga sociedade é óbvio. Ela é simplesmente uma tradição emprestada da
história israelita antiga, em um esforço para explicar o status quo doméstico
daquela sociedade particular, Acima de tudo, essas etiologias da história são
teológicas. Elas explicam a separação de Deus e a mortalidade humana como
resultado do pecado. Em resumo, dentro do gênero da antiga Escrita da História,
as funções da história dos capítulos 2 e 3 do Gênesis são o relato da criação
do mundo, mas essa não é só a intenção fundamental. Também, ela serve para
explicar o contexto da estrutura doméstica da antiga Israel. Está implícito
neste relato o reconhecimento dos historiadores de que os personagens são
símbolos e não pessoas reais e que os episódios não são eventos reais do passado.
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